"Há na loucura um prazer que só os loucos conhecem." (John Dryden)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

"Mãe com Criança Enferma", de Pablo Picasso



Em toda a história da arte, talvez nenhum conjunto de obras artísticas visuais reflita tão bem a miséria humana como as pertencentes ao período azul  dePablo Picasso (1881-1973) .

A fase é basicamente caracterizada pelo predomínio de cores sombrias, como o azul e o verde. São obras impregnadas de melancolia, tristeza e pessimismo.

São exemplos de temas explorados nessa fase: trabalhadores exaustos, mendigos, meninos de rua, alcoólatras, idosos, doentes, amantes desesperados, mães e crianças abandonadas.

 
"Mãe com criança enferma". Pablo Picasso, 1903. Metropolitan Museum of Art, New York.

A figura feminina retratada na pintura acima é uma prostituta, acometida por sífilis, que Picasso conheceu ao visitar o Hospital de Saint Lazare, em Paris. A mulher, abandonada, buscava ajuda para seu filho doente.

Vê-se expresso no rosto da mãe a solidão de sua condição. Seu filho, desnutrido, aparece envolto num manto que ameniza a imagem de sua tristeza e desolação.

O pintor enfatiza tanto os olhos suplicantes dos personagens, que aparecem fixos no espectador, quanto a magra mão da jovem mãe, que agarra seu filho mantendo o gesto de carinho e proteção enquanto aguarda auxílio.

REFERÊNCIAS:
Solar, Ma Dolores Villaverde. “Achaques, dolencias y padecimientos en la mujer a través de la pintura/Ailments, ilness and sufferings in woman through painting”. January 1, 2010.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"O Médico Doente", de Drauzio Varella


Drauzio Varella , formado em Medicina pela USP, é um médico brasileiro que estreitou a ligação da ciência à arte. Notável escritor, publicou Estação Carandiru, obra que ganhou os prêmios Jabuti e Livro do Ano. Dentre outros livros, é autor também de Por um Fio e Borboletas da Alma.

Cancerologista há mais de quarenta anos, Drauzio convive com pacientes terminais diariamente. A estreita ligação com o tema, entretanto, não o preparou para viver a situação inversa.

 
Mal fechei os olhos, o quarto foi invadido por um batalhão de enfermeiras e auxiliares perguntando-me se apresentava alguma alergia, queixa cardíaca, pulmonar, urinária ou digestiva. Enquanto respondia a uma delas, outra instalava o aparelho de pressão em meu braço, e uma terceira colocava o termômetro e enlaçava a pulseira de identidade. Um técnico de laboratório passou um garrote para colher sangue e ligar o frasco de soro: ‘Vou dar uma picadinha’. Foi o primeiro de uma série de diminutivos que viriam a ser pronunciados. [...] O emprego do diminutivo infantiliza o cidadão. Deitado de camisola e pulseirinha, sem forças para agir por conta própria, cercado de gente que diz ‘Vamos tomar um remedinho’; ‘Abre a boquinha’; ‘Levanta a perninha’... há maturidade que resista?

Ao retornar de uma viagem à Floresta Amazônica em 2004, Varella sentiu um mal estar associado à febre e, após um período de relutância obstinada, interrompeu o atendimento em seu consultório e aceitou repousar. Dias depois, foi internado. As incertezas quanto ao diagnóstico cresciam conforme aumentava a febre.

Acompanhando de perto a aflição dos colegas, o paciente viu-se na angustiante posição de compreender melhor do que o doente comum a gravidade de seu caso. Astênico, com a mente embaraçada pela doença e pela morfina, ciente da gravidade de sua situação, o médico passou a considerar a possibilidade de que seus dias estavam contados.

Em “O Médico Doente”, o autor narra sua experiência sob a ótica clínica e cirúrgica. Do leito hospitalar ele retorna aos caminhos que o levaram à profissão e revela os sentimentos de um médico impotente, à beira da morte.

REFERÊNCIA:
1.Varella, Drauzio. “O Médico Doente”. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Sinfonia da dor: Impactos da surdez na vida e obra de Beethoven

Sinfonia da dor: Impactos da surdez na vida e obra de Beethoven

"Quando encontro-me em profundo desespero, tenho paciência e penso: todo o mal traz consigo algum bem." Ludwig van Beethoven

É bem conhecido que o admirável músico alemão foi atormentado por uma progressiva surdez durante grande parte de sua vida. Essa condição levou o gênio a um isolamento social extremo devido ao qual sofreu grave depressão. Paradoxalmente, foi nesse momento que Beethoven alcançou uma linguagem musical ímpar em termos de emoções, chegando ao ápice do sucesso de sua carreira.

Através de fragmentos extraídos de textos escritos pelo próprio compositor, podemos conhecer o processo que culminou na grave deficiência auditiva, bem como avaliar a profunda angústia que esta lhe causou.


SURDEZ

Os primeiros sintomas ocorreram em Viena, tinha Ludwig os seus 26 anos de idade. Iniciada precocemente com um estranho zumbido, a surdez foi progredindo, até alcançar um estado irreversível de grave deficiência auditiva.

Numa carta ao amigo e médico Franz Gerhard Wegeler, datada de 21 de junho de 1801, o maestro refere detalhadamente a progressão dos sintomas, os tratamentos propostos por vários médicos, obviamente inúteis, e a angústia provocada pela ineficácia dos métodos empíricos.

Você tem tido notícia da minha situação? Os meus ouvidos nos últimos 3 anos estão cada vez mais fracos. Frank, o diretor do Hospital de Viena, procurou retonificar o meu organismo com tônicos e meus ouvidos com óleo de Mandorle. Não houve nenhum efeito, a surdez ficou ainda pior. Depois um asno de um médico me aconselhou banhos frios, o que me levou a ter dores fortes. Outro médico me aconselhou banhos rápidos no Danúbio, todavia a surdez persiste, as orelhas continuam a rosnar e estalar dia e noite. Te confesso que estou vivendo uma vida bem miserável. Há quase 2 anos me afastei de todas as atividades sociais, principalmente porque me é impossível dizer para as pessoas : Sou surdo !... Se minha profissão fosse outra, talvez poderia me adaptar à minha doença, mas no meu caso a surdez representa um terrível obstáculo. E se os meus inimigos vierem a saber ? O que falarão por aí? Para te dar uma ideia desta estranha surdez, no teatro eu tenho que me colocar pertíssimo da orquestra para entender as palavras dos atores e a uma certa distância não consigo ouvir os sons agudos dos instrumentos e do canto. Surpreendentemente, nas conversas com as pessoas muitos não notaram minha surdez, acreditam que eu sou distraído. Muitas vezes posso ouvir o som da voz mas não entendo as palavras, mas se alguém grita eu não suporto ! O doutor Vering me disse que certamente meu ouvido melhorará, se isso não for possível tenho momentos em que penso que sou a mais infeliz criatura de Deus.

Em de novembro de 1801, Beethoven, cheio de esperanças, reescreveu à Wegeler:

O que você pensa do doutor Schmidt? Parece ser um outro homem. Me contam maravilhas dele. O que você acha? Um médico me disse que viu em Berlim um menino surdo-mudo começar a ouvir e um homem surdo por sete anos se curar totalmente.

Chegou a consultar-se com o doutor Schmidt, que apenas recomendou que descansasse em Heilingenstadt, pequena aldeia proxima à Viena.

DEPRESSÃO:

E foi em Heilingenstadt que Beethoven atingiu a plenitude de seus pensamentos musicais. Lá também, escreveu o Testamento de Heilingenstadt, documento que nos prova o drama psicológico vivido pelo compositor em seu isolamento. A depressão do maestro, em parte, foi reflexo de sua doença, mas não deixemos de mencionar que, filho de um pai rígido e rude, Beethoven parece ter tido uma infância bem infeliz, o que, de fato, influenciou muito na crise que quase o levou ao suicídio.

Ó homens que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos enganais. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo. Meu coração e meu ânimo sentiam-se desde a infância inclinados para o terno sentimento de carinho e sempre estive disposto a realizar generosas ações; porém considerai que, de seis anos a esta parte, vivo sujeito a triste enfermidade, agravada pela ignorância dos médicos. [...]Devo viver como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram meu triste estado. Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Foi a arte, somente a arte, que me salvou. Ah, parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado tudo o que ainda germinava em mim![...]Esta foi minha vida, angustiosa. Quando lerem estas linhas saberão que aqueles que de mim falaram, cometeram grande injustiça. Peçam ao Dr. Schmidt para descrever minha doença para que o mundo possa se reconciliar comigo, ao menos após minha morte. Ludwig van Beethoven, in Testamento de Heilingenstadt, 6 de Outubro de 1802. [O testamento foi encontrado em Viena, numa pequena escrivaninha, anos após a sua morte.]

ESTUDOS PATOGÊNICOS:

Inúmeras hipóteses têm surgido para determinar as condições patológicas que causaram a surdez do músico, mas apesar das diversas propostas, a verdadeira natureza ainda é desconhecida. Segundo alguns autores, a perda progressiva e o zumbido tipo chiado referido por Beethoven são sintomas característicos de otosclerose. Um artigo mais recente defende que se trata de uma surdez tipo mista, devido ao início precoce, bilateral, simétrico e de evolução diferente de cada lado. Considera-se também a hipótese de que o ouvido interno pudesse ter sido acometido por uma neurite tóxica, infecciosa ou luética.

Dados da autópsia realizada no dia seguinte de sua morte:

"A cartilagem do pavilhão é grande e irregular. O meato acústico externo próximo ao tímpano mostra descamações epiteliais. A trompa de Eustáquio tem mucosa espessa e a parte óssea estreita. As células mastoideas e o parte petrosa do osso temporal principalmente próximo à
cóclea está hiperêmico. Os nervos acústicos estão atróficos e desmielinizados. As artérias auditivas estão dilatadas e escleróticas”. por Johann Wagner e Karl Rokitansi

A CRIAÇÃO - NONA SINFONIA:

Proporcionalmente ao processo de perda de audição, surgiram sons que “gritavam” na cabeça de Beethoven, sons estes que, segundo ele, expressavam sua alma e sua vida. Foram esses sons que deram origem a sua obra-prima. Completada em 1824, quando já quase completamente surdo, foi a última sinfonia composta por Beethoven. A mais conhecida obra do compositor foi apresentada pela primeira vez em Viena. O músico que regeu a sinfonia foiMichael Umlauf, na época também diretor do teatro. Beethoven hesitou a regência graças ao avançado estado de sua surdez. Ao término da apresentação, o artista não pode perceber que estava sendo ovacionado. Umlauf teria ido a ele e o virado em direção ao público para aceitar seus aplausos.

Abaixo, um vídeo com a representação da Nona sinfonia em sua estréia. Faz parte de “Beloved Immortal”, um filme magnificamente dirigido por Bernard Rose. O vídeo evidência a surdez diante da orquestra, a forma como a música “gritava em sua cabeça” fazendo-o ouvir enquanto relembra cenas da própria vida e Umlauf virando-o para receber os aplausos.



"Abracem-se milhões! Enviem este beijo para todo o mundo! Irmãos, além do céu estrelado Mora um Pai Amado. Milhões se deprimem diante Dele? Mundo, você percebe seu Criador? Procure-o mais acima do Céu estrelado! Sobre as estrelas onde Ele mora!" - Ode an die Freude, Schiller, 1786. (Nona sinfonia, quarto movimento).

Através da inevitável solidão Beethoven alcançou uma linguagem musical cheia de emoções, que provavelmente nunca teria conseguido em condições físicas normais. Já que não podia ouvir o mundo, a voz criativa que havia em si manifestou-se plenamente. Talvez a própria surdez, por isolá-lo do mundo e colocá-lo entre as estrelas, tenha sido uma das principais colaboradoras de sua genial obra.

REFERÊNCIAS:
http://medicineisart.blogspot.com/search/label/Otorrinolaringologia 
1.MORRIS, EDMUND “Beethoven” , OBJETIVA, 2007.
2.BENTO, R. “A Surdez de Beethoven, O Desafio de um Gênio” Arq. Int. Otorrinolaringol. / Intl. Arch. Otorhinolaryngol.,São Paulo, v.13, n.3, p. 317-321, 2009.
3. Beethoven, Ludwig, "testament", Heiglnstadt, 6 de octubre de 1802.